João da Matta: a corrida do campeão
* Publicado em 01/01/84 – Domingo
Inquietos, dez mil corredores esperavam a hora da largada de mais uma corrida Internacional de São Silvestre. Agitavam as pernas, erguiam os braços, olhavam os adversários e esperavam o instante da luz vermelha – de um sinal luminoso – pular para o verde.
No pelotão da frente estavam os principais atletas do mundo. Recordistas olímpicos, campeões mundiais, sul-americanos e outros importantes atletas estrangeiros e brasileiros.
Entre eles, o humilde João da Matta. Nome de brasileiro autêntico, jeito simples, vestindo a camisa do popular Clube do Atlético Mineiro. Considerado um competidor importante, pelo bom retrospecto, carregava no peito o número 1. Mas antes da partida começar, pelas arquibancadas e calçadas da Avenida Paulista, somente o nome dos corredores colombianos eram acenados como grandes favoritos.
O desejo de Victor Mora em conquistar o quinto título, a técnica de Domingo Tibaduiza, a juventude de Sílvio Salazar. A força negra de San Ngata e Zacarie Barye, do Quênia e da Tanzânia. Sem José João da Silva, embora respeitados, os outros atletas brasileiros não passavam “de grandes corredores com grandes possibilidades de chegar entre os cinco primeiros colocados”.
João da Matta ouviu e pensou muito. Olhou o asfalto e passou a mão nas pernas.
Aquele caboclo mineiro estava aceitando o desafio. Há algum tempo João da Matta Ataíde conquistou o campeonato brasileiro, ganhando nos 10 mil metros e alcançando o 2° lugar nos 5 mil metros. Venceu a 5ª Mini-maratona da Independência de A GAZETA ESPORTIVA, promovendo um duelo emocionante com José João da Silva. Foi no primeiro brasileiro na classificação geral da Maratona de Nova York.
Ele sabia que a valorização do atletismo brasileiro dependia daquilo que apresentaria dentro de alguns segundos. E pelo cérebro de João da Matta passaram muitas coisas: o sonho de conquistar o título de campeão da Corrida Internacional de São Silvestre, a emoção de sair definitivamente do âmbito nacional e ingressar no círculo fechado dos melhores atletas do mundo.
João da Matta não deixou de pensar na família de origem pura, nos abraços da confiança, nas palavras de esperança que foram ofertadas pessoalmente, através de cartas e de telegramas dos amigos mais próximos. A maioria não o via como grande favorito, mas ele tinha compromissos assumidos com o atletismo, com a carreira, com o futuro. E o sargento PM João da Matta estava decidido a não recuar. Partiria entre os primeiros, correria com a simplicidade mineira visando engolir o percurso de 12.600 metros.
Milhares de sonhadores
Luz verde. O cinturão de policiais abriu e começaram a correr milhares de sonhadores. Percorridos os primeiros metros, ingressando na avenida Luís Antônio um robusto bloco de competidores começava a se destacar. Alguns corredores estrangeiros, inúmeros desconhecidos queimando rapidamente o fôlego e em meio a eles o campeão João da Matta.
Passadas firmes, sapatilha batendo no asfalto de maneira vigorosa e impedindo que o ritmo fosse prejudicado. João da Matta não permitia que o euforismo provocado pela gostosa descida da avenida Brigadeiro Luís Antônio conta dele. Ele sabia que não poderia exigir demais das pernas, no início da corrida.
Na medida em que os metros iam sendo consumidos, surgia a seleção natural. Os dignos corredores anônimos diminuíram o ritmo e os campeões começaram a disputar a corrida. Barye, Ngatia, Salazar, Tibaduiza… e João da Matta. Eles puxavam a corrida, escoltados por batedores e alimentando os olhos dos fotógrafos, jornalistas e radialistas que seguiam alguns metros à frente, registrando emoções, esforços e o intenso desgaste físico.
Formavam um bloco compacto, quase juntos, ultrapassando ruas, avenidas, monumentos, estátuas, bustos de personagens históricos – desconhecidos para os estrangeiros.
Venceram a Praça da Sé, ignorando o piso de granito e o mosaico português. Não viram o marco zero da cidade de São Paulo e nem uma rosa-dos-ventos feitas em mármore de paraná branco. Apenas João da Matta olhou para as palmeiras.
Chegaram ao Pátio do Colégio, o primeiro núcleo de São Paulo. Em 1554, apenas uma capela e hoje uma das maiores cidades do mundo. E João da Matta ergueu os olhos encontrando edifícios das mais variadas épocas e liderando alguns segundo de corrida. Desceu rapidamente o trecho da crua Líbero Badaró e em seguida ficaram juntos novamente, passando pela praça do Correio, avenida São João, desfilando diante do monumento à mãe preta, no largo do Paissandu.
A longa reta da avenida Rio Branco à frente. Um momento importante. O ritmo aumentou, as pernas foram mais exigidas e João da Matta estufa o peito, fecha as mãos e força a velocidade. Sente-se que ele quer chegar primeiro à Alameda Eduardo Prado com seus aclives e declives. É perseguido de perto por Tibaduiza, Ngatia, Barye e Salazar.
João da Matta começa a receber um “combustível extra”: o apoio da torcida. Homens, mulheres e crianças aplaudindo, gritando o nome dele, mostrando bandeiras brasileiras,do, gritando o nome dele, mostae, mostarndo bandeiras brasileiras dos fot Joiro lUsse prejudicado. joom o futuro. e jogando pétalas, arroz, pulando nas calçadas e correndo alguns metros…
O asfalto implacável
O asfalto é implacável, rigoroso, duro, consistente… João da Matta o enfrente de frente, não diminuí o embalo, vence a subida da Eduardo Prado, o suor escorre pelo corpo todo e as pernas mostram músculos vigorosos.
Rompe a avenida Angélica, alguém tenta tocá-lo carinhosamente e não consegue. Era uma senhora que chorava e mostrava uma bandeira do Estado de Minas Gerais. Embaixo do Elevado Costa e Silva (o Minhocão), João da Matta ains=da está na frente, pressionado e pressionando Ngatia, Barye e Tibaduiza. As posições se alternam levemente… nunca se distanciam mais de três passos. Uma disputa emocionante, um combate para quem tem coração forte e músculos resistentes.
Ganham a avenida São João mais uma vez e vislumbram a avenida Ipiranga. Estão há poucos metros da avenida da Consolação. Temível Consolação e sua subida desafiadora. A partir da igreja até a avenida Paulista, são dois quilômetros de pista negra, perigosa, quase invencível. João da Matta olha para a Igreja, fecha os olhos e impulsiona o corpo à frente. Todos buscaram oxigênio para a subida desgastante. Metro a metro, as gotas de suor vão marcando o asfalto e o ritmo não é reduzido. Todos acreditam que a definição só acontecerá na Avenida Paulista. Estavam certos.
O coração do atleta
Entram juntos no último trecho do percurso e João da Matta vê as enormes luzes da Fundação Cásper Líbero. Lá estava a consagração, a faixa da chegada, os amigos, o povo esperando, os troféus, as medalhas, o reconhecimento de um incrível esforço. Ele não podia fraquejar. Os músculos estavam doloridos, os pés um pouco amortecidos pelo impacto com o asfalto, mas ele tinha que continuar forte, altivo e confiante.
E surgiu a força interior que não permite explicações simplistas. Passarm a correr com o João da Matta, o coração de grande atleta, o sangue impulsionando no corpo, a resistência dos músculos aflorou e a dor motivada pelo esforço, refletida no rosto, serviu de incentivo.
Aumentou a velocidade e Tibaduiza, Ngatia e Barye não puderam acompanhá-lo. Era um final de campeão, indiscutível. O algo mais que todo o vencedor precisa ter, tinha surgido em João da Matta. Ninguém mais poderia vencê-lo, interromper a marcha rumo ao pódio. Era apenas uma questão de segundos. Delírio pelas arquibancadas, executivos esquecendo a frieza do formalismo e os trabalhadores aplaudindo com emoção e lágrimas nos olhos.
João da Matta, campeão da 59ª Corrida Internacional de São Silvestre, deixando o Brasil começar bem o ano, com uma vitória entusiasmante e inesquecível
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